domingo, março 22, 2009

Lisboa ao entardecer



Lisboa ao entardecer redime-se de tudo.
Não há mau gosto, não há pelintrice, que resistam a uma claridade assim, alastrada na superficie de um rio como este, liso, saudoso, aberto para o longe... Não há miséria nem desleixo que resistam à doçura do ar, às aventuras da luz e da sombra por estas encostas abaixo.
Tardes de ramos nus, eriçados de botõezinhos novos, tardes de castelos na bruma e jóias de fogo acesas bruscamente no topo dos mastros, na ponta das quilhas; tardes em que a Outra Banda é uma costa longínqua, irreal, a emergir da névoa; tardes em que todo o quadro, casas, árvores, céu e rio, barcos à vela e cruzadores, montes recortados de além e guindastes finos de cá - todo o quadro tem apenas duas cores, cinzento e rosa em gradações infinitas. Jogo de cortinas impalpáveis, que vai desde a nitidez diáfana do nu - com os montes recortados nos ínfimos detalhes, verde-garafa, amarelo-torrado - até à fantasmática mise en scène de véus cinzentos, de montes de cristal, de água de prata fosca... Mais pela noite dentro, o céu é azul vivo, límpido e fundo, a descair para o verde doirado na distância, com silhuetas de casas negras, onde a luz de Natal brilha fixa. E no rio cor de tinta passam hipóteses de barcos, arvorando luzes que sulcam a àgua invisível... (Ester de Lemos)

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